Médicos não devem ser robôs…precisamos humanizar a medicina.
O futuro da medicina está diretamente relacionado com o mundo digital e a IA. Mas, não serão apenas as tecnologias que transformarão e moldarão a medicina nas próximas décadas. As tecnologias por si apenas apontam as possibilidades de mudanças comportamentais que podem e devem ser feitas. A mudança, no modelo mental do que é considerado sistema de saúde hoje, que será o agente transformador.
As respostas robóticas dos médicos nas consultas, o ecossistema conflituoso, o foco na doença e não na saúde, são alguns dos sintomas mais visíveis da doença grave que acomete a medicina como um todo.
No meu entender a IA tem papel fundamental em apoiar esta mudança no modelo mental. Foi o tema da série de seis artigos publicados no site Neofeed durante o ano de 2020. A IA possibilita que tiremos o robô de dentro do médico e permite criar uma medicina mais humana. Os médicos e hospitais estão desumanizados. A IA é a oportunidade de restaurar uma das coisas mais valiosas da medicina, que é a conexão humana, a empatia na relação médico-paciente. Vai reduzir o tempo desperdiçado em atividades robóticas que os médicos exercem, abrindo tempo livre para a atenção ao paciente. Em vez de gastar treze dos quinze minutos de uma consulta em analisar exames, digitar seus resultados em um laptop, usando os dois restantes para receitar novos exames e drogas, o médico terá todas as informações disponíveis em dois minutos e os treze restantes serão dedicados a ouvir e entender o paciente. A IA não será substituta do médico, mas complementar à sua atividade. Vai ajudar no diagnóstico. A IA será o novo estetoscópio.
Mas a IA não vai parar por aí. Vai permitir a transformação da ciência biomédica, acelerando a descoberta de novas drogas, extraindo insights de análises genômicas e integrada com fluxo contínuo de dados gerados pelos próprios pacientes através de seus wearables e smartphones, vai nos levar a uma medicina personalizada, contínua e preditiva.
Sabemos que um mesmo medicamento não tem o mesmo efeito para todo mundo. Pensávamos que todas as pessoas eram mais ou menos iguais e que uma mesma doença, com a mesma gravidade, teria características similares em pessoas diferentes. Hoje já descobrimos que os caminhos que levam determinado indivíduo a chegar a um mesmo nível de severidade de uma doença podem ser muito diferentes de outra pessoa. A forma como essa pessoa deverá ser tratada tem que ser individualizada.
A medicina baseada em evidências, que é a opção que usamos hoje, tenta randomizar os pacientes com base em suas características gerais. Mas os medicamentos que uma pessoa toma com base nessa evidência não necessariamente apresentam o mesmo resultado de outra pessoa. A média dos pacientes não se mostra adequada a cada indivíduo.
A IA pode ajudar muito analisando bases de dados com diferentes fenótipos, que é a forma como o genótipo se expressa. Assim, analisando dois pacientes internados em uma UTI com pneumonia, ambos intubados e com medicação para manter pressão arterial estável, parece ser uma situação muito parecida. Mas se considerarmos outros fatores, que não são visíveis a olho nu, mas, que um algoritmo pode correlacionar, veremos que os desfechos poderão ser muito diferentes. A resposta de cada um a determinada terapia será diferente.
Um outro exemplo é o uso de antibióticos. Hoje um caso de pneumonia é tratado com diferentes tipos de antibióticos. Se pudermos ser mais ágeis e rápidos na identificação de qual cepa é responsável pela infecção e se ela é resistente ao tratamento dado ou não, será possível ser mais assertivo e rápido na cura.
O primeiro artigo da série, “A medicina está doente. Mas a inteligência artificial vai salvá-la” mostra como muita coisa pode ser melhorada na prática atual da medicina. As relações médico e paciente estão desconectadas, com a imensa maioria dos médicos estressados e pressionados, dispensando pouco tempo na pessoa do paciente em si e apenas olhando exames e prescrevendo medicamentos. Estes contatos esporádicos e superficiais provocam erros de diagnósticos e acabam incentivando exames e prescrições desnecessárias e supérfluas. Em hospitais a situação é bem pior. Os números são alarmantes.
No segundo artigo, “Inteligência artificial mudará a medicina, mas não acabará com o papel do médico”, discutimos como a IA pode ajudar no diagnóstico. Estima-se que existam cerca de 10 mil doenças humanas catalogadas e nenhum médico conseguiria recordar de todas elas e portanto, muitas vezes recorre a truques adquiridos pela sua experiência profissional para ajudar a identificar a doença rapidamente. Mas, como todos seres humanos, os médicos são influenciados por vieses, como por exemplo, o “viés da confirmação”, onde ele, pela sua experiência, cria uma curta lista de hipóteses e delas extrai a que considera mais provável. Esse diagnóstico geralmente sai no primeiro minuto da consulta e ele usa o tempo restante para indagar questões que confirmem a hipótese que ele considera mais provável. Além disso, a dependência excessiva em exames também leva a solicitação de um número abusivo dessas solicitações, que muitas vezes não ajudam absolutamente em nada no processo de diagnóstico. A crença disseminada pela sociedade que médicos devem prescrever drogas também leva a uma grande e excessiva pressão para que em cada consulta o paciente saia com uma receita. Na maioria das vezes o medicamento tem efeito inócuo ou mínimo na doença. Além disso, por causa da fragmentação da medicina em diversas especialidades, a tendência é cada especialista avaliar sua área e indicar um medicamento específico. No conjunto, porém, a interação dos medicamentos prescritos pelos diversos especialistas que a pessoa se vê obrigada a consultar pode não dar certo. E, em geral, pelo acúmulo de medicamentos, acabam provocando efeitos colaterais indesejados.
O terceiro artigo, “Assim caminha a medicina: da época dos horrores à era dos algoritmos” mostra como IA pode ajudar nas especialidades médicas voltadas a análise de padrões, como radiologia e patologia. Não significa que o radiologista seja uma especialidade em extinção, mas que um radiologista que usa IA será muito melhor que um radiologista que não usa a tecnologia. O papel do radiologista também será mudado. A interação dele com o paciente, hoje uma anomalia no processo, será o “novo normal”.
No quarto artigo, “A inteligência artificial vai se tornar o novo estetoscópio dos médicos” abordamos outras áreas da medicina que serão profundamente afetadas pela IA, como oftalmologia, cardiologia e oncologia. A conclusão é que em breve, não vamos mais discutir se um médico está adotando a inteligência artificial, mas porque não a está usando.
No quinto, “O que suas fotos no Instagram podem revelar sobre sua saúde mental” debatemos como a inteligência artificial vai ser uma importante aliada na sua saúde física e mental. De bots psiquiátricos até análises de fotos no Instagram, que podem revelar sinais de depressão, a tecnologia poderá auxiliar médicos em diagnósticos mais precisos, em áreas onde é difícil ter certeza que a processo de cura está sendo positiva. Quando um médico trata uma doença, e o paciente é curado ele passa a ter um feedback positivo, e isso pode ajudar em outro caso similar. Em doenças mentais, muitas vezes o feedback não existe ou demora muito e é difícil para o profissional saber se sua técnica está dando certo ou não. A IA pode ajudar neste processo. Um artigo interessante na Wired, “The Therapist Is In — and It’s a Chatbot App” mostra como a tecnologia digital está ajudando pessoas em momentos de crise, como a atual pandemia, e que isso, provavelmente pode ser tornar um novo hábito nos processos terapêuticos.
O sexto e último, “Um smartphone para chamar de doutor” aborda o canivete suíço da medicina. Mas, toda essas tecnologias digitais e a IA só farão diferença se conseguirmos melhorar a prática médica na sua totalidade. Como outras profissões, veremos especialidades desaparecerem ou serem aglutinadas com outras, novas aparecendo, mas todas serão transformadas. Um exemplo é a diferença entre o perfil do cirurgião do século 19 e a de hoje. São completamente diferentes em suas habilidades.
O ecossistema de saúde como um todo tem que ser reimaginado. O modelo atual, conflituoso entre seus atores, ineficiente, caro e que não coloca o paciente no centro das atenções, não é mais adequado. Um novo cenário que tem que começar a ser construído hoje. Ele não surge do nada, mas é montado peça por peça.
Um fator fundamental na transformação da medicina é a formação dos futuros médicos. Competências como Inteligência emocional e habilidade para criar empatia não são consideradas importantes hoje e nem são abordadas adequadamente nas escolas de medicina. Deverão ser. A medicina deverá usar a tecnologia digital (os médicos deverão ser fluentes nas tecnologias digitais) e ao mesmo tempo usar esta tecnologia para humanizar o processo. Restaurar o humanismo na medicina. A formação médica deverá mudar de “centrada na doença” para “centrada no humano”, no paciente. Não podemos e nem devemos continuar formando médicos para a medicina do século 20. As ações robotizadas, o robô vai fazer. Ter empatia e se preocupar verdadeiramente com o paciente é que fará a distinção entre o médico e o robô.