Ser ou não ser uma Amazon?

Cezar Taurion
8 min readJul 19, 2021

No dia 5 de julho, Jeff Bezos deixou a posição de CEO da Amazon, empresa que ele fundou em 1994. E como constantemente ouço executivos falaram de seu desejo de transformar a sua empresa em uma Amazon, resolvi escrever esse post. Mas, o que é uma Amazon? Como foi construída ao longo de quase três décadas e o que realmente faz a Amazon ser uma Amazon? Será possível copiarmos seu modelo? Vários livros abordam a empresa e tentam de alguma forma dissecá-la. Li alguns deles e vou tentar aqui trazer um pouco do que entendi o que é a Amazon e mostrar que nenhuma empresa será igual, pelo simples fato que as empresas são diferentes. O caminho mais adequado não é tentar copiar a Amazon, mas entender a essência que fez a Amazon ser o que é, e adaptar essa essência às suas características e cultura. Não é fazer sua empresa ser uma Amazon, mas fazer sua empresa ser ela mesma, sem os lastros e ineficiências acumuladas ao longo de décadas.

Querer ser uma Amazon vem da constatação que os sistemas de gestão predominantes na maioria das empresas são modelos herdados de formas antigas de organização como nas Forças Armadas e na Igreja Católica. Modelos planejados com o propósito de comando e controle. Esses modelos foram adotados pelas empresas e consolidados no último século, em um cenário onde não havia internet e nem smartphones. O resultado é que embora modernizadas aqui e ali, esses modelos mantém muitas camadas hierárquicas, com decisões lentas e uma penosa burocracia espalhada por toda a organização. O conceito de separação das empresas em setores de indústria faz com que os executivos se fixem na concorrência e adotem uma mentalidade focada em crescimento incremental, copiando algum competidor aqui e ali. Segundo Bezos, “se você está focado na competição, você terá que esperar até que um competidor faça algo. Se você está focado nos clientes, poderá ser pioneiro.”. O foco apenas na competição tende a ignorar o fato que o cliente obtém experiências positivas das suas interações com empresas de outros segmentos e quer as mesmas facilidades e inovações que estão em outros mercados.

A Amazon criou uma disrupção em diversos setores e por isso tenta ser imitada. Na prática o que a Amazon fez foi criar um modelo de gestão baseado nas tecnologias digitais, com foco no cliente. Ora, todas as empresas falam em foco no cliente e de alguma forma usam tecnologias digitais, tendo até grandes setores de TI, com gastos elevados em tecnologia. Onde está a diferença?

Primeiro, observo que embora falar em colocar o cliente em primeiro lugar é mantra de quase todas as empresas, poucas realmente fazem isso. Elas criam seus processos de dentro para fora e lá na ponta colocam o cliente. É a visão da empresa para o cliente e não do cliente para a empresa. Além disso, dão enorme ênfase aos resultados financeiros de curto prazo, o que muitas vezes as levam a confrontar seus próprios clientes, quando as prioridades, atender cliente ou privilegiar resultado financeiro, entram em choque. Jeff Bezos enfatizou isso em uma de suas cartas para os acionistas, quando afirmou “Nosso objetivo de precificação é conquistar a confiança do cliente, não otimizar dólares de lucro de curto prazo”.

Em muitas empresas a importância de recrutar e reter os melhores talentos também perde valor diante dos números. E não é incomum vermos um setor de recrutamento ter seu desempenho medido pela rapidez com que as contratações são feitas e um outro e diferente setor, o de retenção, tentando reter talentos que talvez nem devessem ter sido contratados. Muitas contratações são processadas com pressa e as necessidades imediatas tendem a ditar como é conduzido o processo de contratação, dando pouca ou nenhuma consideração ao encaixe da pessoa nos prospectos de longo prazo da empresa. Na Amazon, desde início foi definido ter um patamar alto e isso conduz todo o rigoroso processo para a contratação.

Um fato interessante do processo é o teste de escrita. “Para algumas funções, podemos pedir a um candidato que complete uma amostra de escrita”. Por quê? Porque o PowerPoint foi banido da Amazon e eles usam memorandos em formato narrativo.

Os modelos de gestão burocráticos e com muitas camadas decisórias, fragmenta a organização em silos, fazendo com que decisões sejam muito demoradas, pois requerem que elas percorram camadas e mais camadas dentro da hierarquia. É verdade que muitas empresas reduziram essas camadas, mas continuam com dificuldades para acelerar o processo decisório, porque enfrentam graves problemas de integração entre seus diversos sistemas, e, portanto, não conseguem obter uma visão rápida e única da organização como um todo. Um exemplo são aquelas empresas que só conseguem fazer seu fechamento contábil e financeiro duas ou três semanas após o fim de cada trimestre.

Tudo isso leva a uma organização lenta, complacente, pouco propensa a inovar, contentando-se na maioria das vezes com melhorias incrementais setorizadas. Uma análise de muitas empresas nos leva a diagnósticos similares: elas se tornaram rígidas, lentas, avessas ao risco, onde a complacência e a burocracia se entranharam. Não conseguem ter a velocidade, agilidade e a vitalidade de empresas como a Amazon, Netflix, Google, Apple e diversas outras que se destacam no atual mundo corporativo. Uma olhada no infográfico “The Biggest Companies in the World in 2021” mostra claramente que as principais companhias são empresas de tecnologia digital ou usam intensamente a tecnologia digital. Mas, não é apenas a tecnologia que faz diferença, pois as tecnologias estão disponíveis a todas as empresas. O que elas fazem com as tecnologias é que faz a diferença. Um exemplo é que na maioria das empresas, elas usam a tecnologia basicamente para reduzir custos e não para transformar por completo a experiência atual do cliente e imaginar uma experiência que não existe hoje, ou, seja, criar a experiência futura. Ambas são importantes, mas a importância relativa que a empresa dá a redução de custos e à experiência do cliente é que identifica se seu DNA é mesmo de foco no cliente ou é apenas uma simples narrativa.

Analisando em mais detalhes alguns aspectos da Amazon, um ponto que chama atenção foi o fato deles terem identificado bem cedo o potencial do conceito de plataforma. No modelo de plataforma, o importante é o ecossistema e por isso a Amazon aceita vendedores externos no seu site. A ideia é que mais vendedores trarão maior variedade, atrairão mais clientes (mais tráfego no site) e, assim, aumentarão a escala (crescimento). A escala ampliada reduzirá mais ainda a estrutura de custos e se traduzirá em preços ainda mais baixos para os clientes. Com o aumento na variedade de produtos, diminuição no preço e o provável aumento da conveniência (benéfico colateral do aumento da escala), a experiência do cliente será melhorada. A experiência melhorada vai gerar mais tráfego no site, aumentando então o crescimento, criando um ciclo virtuoso.

Mas, por que todas as empresas não adotam o conceito de plataforma? Criar uma plataforma demanda um pensamento de longo prazo, pois demanda muito investimento e numa perspectiva de resultados de curto prazo, mesmo em horizonte de dois a três anos, não geram retorno suficiente para cobrir os investimentos iniciais. O seu ROI é demorado e colide de frente com os modelos financeiros que privilegiam retorno em tempos bem mais curtos. Uma frase bem conhecida e que exprime bem essa verdade é “A maior parte do valor de uma empresa de tecnologia virá ao menos 10 ou 15 anos no futuro. “, de Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal.

A Amazon foi fundada em 1994, fez seu IPO em 1997, mas foi só em 2005 que seu crescimento exponencial aconteceu. Mas, mesmo crescendo exponencialmente, o seu lucro líquido continuou baixo, não acompanhando o crescimento das vendas. Ou seja, a Amazon investia em seu crescimento. Antes de se preocupar em dar lucro, a Amazon se preocupou em crescer, dominar mercado, construir enormes bases de clientes e criar uma ótima experiência de consumo. Apenas por volta de 2017 que o lucro começou a fazer uma curva exponencial. Em 2020 a Amazon faturou US$ 386 bilhões, com lucro líquido do período crescendo 84% em relação ao ano anterior.

Vamos explicar isso melhor. Uma empresa digital usa como sua métrica mais relevante o caixa operante por ação (cash EPS) e não o lucro por ação. Ao contrário do investimento em ativo fixo das empresas tradicionais que pode ser categorizado como capital investido (capex), e portanto, depreciado ao longo do tempo, a maioria dos investimentos em tecnologias, sistemas e plataformas digitais podem ser definidas como despesas operacionais (opex), e assim são listados como gastos do ano corrente, diminuindo o lucro líquido. Basta ver que as empresas digitais mais valiosas do mundo, como Amazon, Microsoft, Google e Apple mantém pouquíssimos ativos fixos.

Por que esse foco em fluxo de caixa, em especial o de gerar margem bruta? Uma ação é uma parcela do fluxo de caixa futuro de uma empresa e, como resultado, fluxos de caixa, mais do que outra variável, mostra o melhor jeito de explicar o preço das ações de uma empresa no longo prazo.

Por exemplo, em 2018, a Amazon gerou 232,9 bilhões de dólares de receita. Com uma margem bruta de 40,25%, isso se traduziu em 93,7 bilhões de dólares de margem bruta gerado em um único ano. Do ponto de vista de fluxo de caixa operante, a Amazon gerou 30,7 bilhões de dólares em caixa líquido nesse ano. Mas, ao invés de deixar esse dinheiro registrado como lucro, vem investido massivamente em tecnologia e pesquisas, para financiar sua escala de crescimento exponencial.

Vemos então que uma variável fundamental para o negócio de plataforma é escala. Aumentar a escala distribui os custos fixos, reduzindo o custo unitário, o que faz com que mais reduções sejam possíveis. Uma vez que a escala passa um determinado limite, chamado de ponto de virada, permite a criação de novos negócios, com custo incremental menor, o que aumenta a interação e provoca aumento da escala. Escala é central para o modelo de negócios de plataformas.

Outra variável é velocidade, para lançar novos produtos e serviços é essencial para manter a plataforma sempre atrativa.

O grande desafio é sair da concepção do modelo de negócios para sua implementação. Nem todas as empresas e startups que tentam adotar modelos similares à da Amazon conseguem ou conseguiram resultados positivos. Um artigo, “Today’s Unicorns Have Bigger Cumulative Losses than Amazon, Lost Money far Longer than Amazon, Still No Turnaround” mostra que várias startups que tentam usar modelo similar ainda não decolaram e talvez jamais decolem. A confluência de fatores que fizeram a Amazon dar certo não pode ser automaticamente replicável. Cada empresa tem que criar seu próprio modelo, observando e até adaptando experiências vindas da Amazon ou outras empresas digitais, mas convergindo para sua cultura e valores.

Para concluir, para quiser um aprofundamento maior no assunto, recomendo uma lista de livros que discutem o modelo de plataformas e o fenômeno Amazon:

1) The Business of Platforms: Strategy in the Age of Digital Competition, Innovation, and Power, de Michael A. Cusumano, Annabelle Gawer e David B. Yoffie.

2) Plataforma: A revolução da estratégia, de Geoffrey G. Parker.

3) A loja de tudo, de Brad Stone.

4) O sistema Amazon: Descubra o método de gestão que pode trazer resultados extraordinários para você e sua empresa, de Ram Charan e Julia Yang.

5) As cartas de Bezos — 14 princípios para crescer como a Amazon, de Steve Anderson e Karen Anderson.

6) Amazon Unbound, de Brad Stone.

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