Uma releitura das BigTechs…

Cezar Taurion
6 min readJan 18

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No início de 2015 li um livro que na época, empolgado com a febre das startups, me marcou muito: “Zero to One: Notes on Startups, or How to Build the Future”. Seu autor, Peter Thiel, é conhecido investidor , tendo sido criador do PayPal e depois, como sócio da Founders Fund, investiu em empresas como SpaceX e Airbnb. Foi o primeiro investidor externo do Facebook e dos primeiros a apostar no Linkedin, entre outras startups. Muito significativo E sem dúvida, o livro me gerou bons insights, alguns que apliquei como mentor e investidor em startups aqui no Brasil.

Hoje, quase dez anos depois, começo a fazer releitura de muita coisa que li naquela época. O mercado mudou. As empresas de tecnologia, que surfaram grandes swells com os lockdowns que dispararam o mundo digital e aceleraram brutalmente sua valorização do mercado, estão enfrentando tempestades pela proa. Demitindo em massa e cortando todos os projetos supérfluos. Não existe mais dinheiro fácil e aquelas startups e empresas de tecnologia que basicamente se concentraram na estratégia de crescimento acelerado para conseguir novo aporte e viver de dinheiro dos investidores começam a ser questionadas. O paradigma “blitzscaling”, de construir rapidamente a empresa, priorizando a velocidade sobre a eficiência em busca de escala massiva, é muito questionada hoje.

Aliás, é impressionante como a maioria das startups que se tornaram unicórnios acumulam prejuízos imensos. Da lista abaixo, apenas uma, a Airbnb teve um trimestre no azul. O restante, desde sua criação, foi prejuízo acumulado. O discurso é que a lucratividade está logo ali e que a Amazon também teve muitos prejuízos até dar lucro. Mas citar apenas um exemplo, o da Amazon, não generaliza a regra. Foi uma exceção, causada por diversos fatores. O que sabemos é que como a maioria tem pelo menos 10 anos de vida e algumas até mais, e ainda não deram lucro, quando ele virá? E outra questão: será que o seu modelo de negócios é mesmo viável ou só sobrevive às custas dos investimentos dos VCs?

1. Uber, fundada em 2009, captou 23 bilhões de US$ de investimento e acumula US$31.7 bilhões de prejuízo.

2. WeWork, de 2010, captou US$21,9 B e acumula prejuízo de US$20,7 Bilhões.

3. Snap, de 2011, captou US$4,9 B e acumula prejuízo de US$9,1 B.

4. Lyft, de 2012, captou US$4,9 B e acumula prejuízo de US$8.9 B.

5. Airbnb, de 2008, captou US$6,0 B e acumula prejuízo de US$6,0 B.

6. RobinHood, de 2013, captou US$6,2 B e acumula prejuízo de US$4,2 B.

A maioria desses unicórnios viu seus preços de ações caírem mais de 50% em relação ao seu auge e muitas dessas ações caíram mais de 90%. E a WeWork não é o único unicórnio que se transforma em “penny stock”, ou seja, vale um centavo… se a queda das ações continuar, deixará de ser atrativo para investidores em sua luta para atrair dinheiro novo e tentar sair com algum lucro ou pelo menos, pequenos prejuízos. Com isso, a captação deixa de existir e como o negócio não se sustenta por si, nada garante que algumas não acabem falindo. A lista mais detalhada está no artigo “Any one of these 15 money-losing companies could become the stock market’s biggest ‘unicorn’ failure ever”.

O foco agora se redireciona ao básico, de gerar lucratividade e crescer com consciência. O conceito do unicórnio deu lugar ao camelo, resiliente, que mesmo devagar vai longe. Dois artigos explicam bem isso: “Startups, It’s Time to Think Like Camels — Not Unicorns” e “Startups Should Forget Aspiring To Be Unicorns — Be Camels Instead”.

Isso me abriu os olhos. Talvez essa sabedoria toda do Vale fosse válida apenas para aquele momento específico, mas não seria resiliente o suficiente para suportar as inevitáveis mudanças de cenários, que acontecem naturalmente em qualquer mercado.

Além disso, o livro embute alguns conceitos arraigados do Vale do Silício que agora consigo visualizar mais claramente. E, confesso, não gosto deles!

Por exemplo, Thiel escreveu “mais do que tudo, a concorrência é uma ideologia — a ideologia — que permeia nossa sociedade e distorce nosso pensamento. Pregamos a concorrência, internalizamos sua necessidade e aplicamos seus mandamentos. Como resultado, ficamos prisioneiros dela — ainda que, por mais que concorramos, menos realmente ganhamos”. A ideia básica é que sem concorrência, os monopólios conseguem se concentrar em resolver problemas relevantes e gerar inovações revolucionárias. Esses argumentos é que são a premissa das estratégias das empresas do Vale do Silício. O livro “Modern Monopolies: What It Takes to Dominate the 21st Century Economy” mostra claramente que as BigTechs são plataformas que se tornaram monopólios e isso foi fruto do modelo mental dominante no Vale.

Chegar a ser um monopólio é o mantra do Vale, e vemos isso em todos os lugares onde existem BigTechs. Excluindo o planeta China, com seus próprios monopólios, no ocidente o que vemos? Uber praticamente não tem concorrentes, com o Lyft bem distante e a não ser em alguns locais como 99 no Brasil, Ola Cab na Índia e alguns países com seus apps. Airbnb domina o mercado de hospedagem online. O duopólio Expedia e Booking controla praticamente o mercado de viagens online (OTA Online Travel Agencies), com exceções em alguns países. O Google domina o mercado de buscas. A Apple e Google controlam o mercado de apps. Amazon, Google e Microsoft controlam o mercado de “assistentes pessoais.”. A Meta controla o mercado de redes sociais e de mensagens pela internet. Só existe um Twitter. Essas empresas concentram o armazenamento de nossos dados pessoais como fotos, documentos e e-mails. E dominam o mercado de sistemas de IA. Com isso conhecem nossa personalidade e gostos.

As BigTechs se tornaram verdadeiros monopólios, com aspirações quase ilimitadas. Querem e estão conseguindo moldar a humanidade. Acenam para a individualidade, mas sua visão do mundo é totalmente contrária: nos colocam em redes controladas por elas. O individualismo tem como principal pressuposto o livre-arbítrio, mas o que as BigTechs fazem é automatizar e influenciar as escolhas que fazemos ao longo do dia, sejam essas grandes ou pequenas. Influenciam e até controlam que filmes podemos assistir, que livros comprar, que posts publicar e que notícias podemos saber. Nos indicam o caminho que devemos seguir e os amigos que trazemos para perto. Colocam a sociedade em uma existência coletiva, matando a individualidade e a privacidade, em um todo unificado, onde atuamos de forma passiva e subordinada. Em troca oferecem facilidades e, caro, é difícil não nos deslumbrarmos com elas.

Mas, o ponto que começo a questionar é: estamos analisando as consequências desses monopólios? Com o tamanho e poder que possuem as BigTechs tem capacidade de refazer os mercados que controlam. Reformularam toda a cadeia de produção cultural com objetivo de serem mais lucrativas. Por outro lado, geram conformidade e isso me parece muito perigoso. Monopólio significa que essas empresas poderosas podem acabar com a diversidade competitiva, homogeneizar hábitos, costumes e opiniões. Por exemplo, recentemente nos deslumbramos com o chatGPT e já começamos a ver muita gente produzindo conteúdo criado por ele. Mas como ele produz esse resultado aglutinando uma imensa massa de dados usado no seu treinamento, da qual não sabemos a fonte, isso não provocaria uma homogeneização da produção cultural?

O celular é um órgão do nosso corpo e uma extensão da nossa memória. Já terceirizamos funções mentais básicas para os algoritmos e deixamos de lado a privacidade. Receio que estejamos nos subordinando às BigTechs e a seus objetivos de negócio, que muito provavelmente não serão os mesmos que os nossos. Como disse Yuval Harari: “We are no longer mysterious souls; we are hackable animals”.

O mundo digital já é realidade. Não vamos e nem devemos lutar contra ele. Ele traz inúmeros benefícios. Mas precisamos ser conscientes dos limites que queremos e devemos manter.

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Cezar Taurion

VP Inovação e estratégia CiaTécnica, mentor e investidor em startups